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Afinal, o ato de Bolsonaro na Paulista mudou a conjuntura?

“Tenho saudades de um país que ainda não existe no mapa”, Eduardo Galeano

 

A extrema direita lotou a Av. Paulista no dia 25/02. Não há como negar esse fato. Estimativas mais confiáveis falam em 185 mil pessoas, bem longe dos 600 ou 700 mil alardeados pelos organizadores e pela polícia (comandada em São Paulo por um bolsonarista), mas ainda assim um ato multitudinário. Dez quarteirões da avenida foram ocupados, quatro deles totalmente. 

A iniciativa, ao que tudo indica, foi do pastor Silas Malafaia e tinha como principal objetivo dar uma demonstração de força, defender Bolsonaro e constranger o STF e a PF nas investigações sobre a tentativa de golpe de 08 de janeiro de 2023. Além disso tinha por objetivo propor ao Congresso Nacional uma “anistia” aos golpista e a ele próprio, Bolsonaro. A organização foi bastante eficiente. Poucas falas, conteúdos bem ensaiados, nenhuma agressão explícita ao STF (exceto a fala de Malafaia), nenhum cartaz com dizeres ofensivos e uma sincronização das presenças para evitar encontros proibidos por determinação judicial (Valdemar da Costa Neto está impedido de encontrar Bolsonaro, por isso foram em horários diferentes). Havia quatro governadores presentes (SP, MG, SC e GO) e dezenas de parlamentares, numa demonstração de força.

Do ponto de vista simbólico foi bastante eficaz. Messiânico como sempre, o ex-presidente se vitimizou, citou explicitamente o PSOL (ao lembrar da facada de 2018), o MST (ao ressaltar que seu governo entregou títulos no campo), reafirmou a sua cruzada contra o comunismo, a “ideologia de gênero”, as “drogas”, defendeu o armamento da população e a sacralidade da propriedade privada, as principais pautas da extrema direita. Ele chegou usando um colete à prova de balas e uma “pasta” balística, também à prova de balas. Uma encenação que reforça a vitimização que ele protagonizou à exaustão.

Mas seu discurso foi ameno para os padrões que estamos acostumados a ver. Defensivo mesmo. Falou em “pacificação”, em “anistia” e em “passar uma borracha no passado”. Na véspera ele conversou com Michel Temer, que advoga essa “paz”. A anistia a que se referiu foi para os “pobres coitados” que estão presos pelos atos golpistas. Contudo, sua já conhecida sociopatia o impede de ter qualquer empatia com os presos, na verdade essa “anistia” a que se refere é para ele próprio. Usou boa parte do tempo para defender seu governo e, de forma bastante cínica, chamou a pandemia de “aquela coisa que aconteceu”. Falou por cerca de 20 minutos e, repito, a tônica não foi a ofensividade, mas o apelo à pacificação.

Coube ao Malafaia o papel de cão que morde. Apesar de ter baixado o tom habitual, sua fala criticou Lula, o STF e a “perseguição” da PF a Bolsonaro. Falou por mais tempo que Bolsonaro e afirmou não ter medo de ser preso. Na hora que Malafaia fez críticas mais duras ao STF, os governadores Romeu Zema (MG), Ronaldo Caiado (GO) e Jorginho Melo (SC) desceram do trio. Apenas Tarcísio (SP) permaneceu, não sem um certo constrangimento. Mais tarde Malafaia chamou de “molecagem” e taxou os três governadores de “cambada de frouxos, covardes e X9”, confirmando que o acordado entre os oradores era baixar o tom.

A despeito disso erra quem acha que houve recuo da extrema direita. Se o teor dos discursos foi amenizado, a própria realização de um ato tão grande foi a mensagem mais importante. A extrema direita e o bolsonarismo seguem fortes e atuantes e isso só é novidade para quem desconhece a conjuntura nacional. A mensagem de Bolsonaro sobre as eleições de 2024 foi clara: querem eleger o maior número de vereadores e prefeitos (aliás essa fala, a rigor, pode ser caracterizada como crime eleitoral – campanha antecipada). É surpreendente que alguns setores da esquerda tenham se assustado com o ato. Sempre dissemos que a vitória contra o bolsonarismo foi eleitoral (e parcial, vide a atual composição do senado e da câmara dos deputados). A derrota dele se circunscreveu à eleição presidencial e foi prioritariamente eleitoral.

Um fato foi relevante embora pouca gente tenha se atentado: a ausência dos militares. Ao contrário dos atos anteriores, quando Bolsonaro ainda era presidente, onde havia uma constelação de generais, almirantes e coronéis nessas manifestações, o ato na Paulista não contou com a presença das Forças Armadas. Ainda há que se procurar as reais explicações para essa ausência, mas talvez já seja um primeiro reflexo das investigações dos atos golpistas. Pela primeira vez na história recente do Brasil há investigação na alta cúpula das FFAA e a possibilidade de condenação não é desprezível.

A composição do ato foi mensurada durante a própria realização do ato. Vários institutos fizeram pesquisas na tarde mesmo do dia 25/02. Uma compilação dessas pesquisas mostra que a maioria era composta de homens brancos, de direita, católicos e evangélicos, maiores de 35 anos, com ensino superior completo e que recebem de 3 a 10 salários-mínimos. A grande maioria, 66%, é oriunda da grande São Paulo e apenas 5% se autodeclararam pretos, embora 26% tenham se identificado como pardos. Um ato de direita típico, que mobilizou camadas populares e médias radicalizadas na pauta “anticomunista”. A pauta em defesa de Israel e contra o povo palestino, guardadas as bizarrices de considerar o estado sionista como cristão, foi turbinada pela recente polêmica envolvendo as declarações de Lula sobre o genocídio sionista.

A parte final e a mais importante da fala de Bolsonaro tratou do pedido de “anistia”. Mas aqui ele pode ter criado um problema para si próprio. Ao contrário do que afirmou anteriormente, ele confessou ter conhecimento da minuta golpista e afirmou que golpe é “só com tanque nas ruas”, ignorando que a própria preparação e tentativa de golpe já configura crime. A ver se isso será juntado ao processo que já corre contra ele.

O ato na Paulista foi grande, muito grande, mas a rigor não mudou a realidade. Já sabíamos que a extrema direita segue organizada, que ainda influencia milhões de pessoas direta e indiretamente, que segue fortalecendo o discurso religioso-político (perceptível na fala de Michele Bolsonaro) e está trabalhando incansavelmente para crescer nas eleições de outubro próximo.

A nossa estratégia deve seguir exigindo a punição e prisão de todos os golpistas, Bolsonaro inclusive e principalmente. A palavra de ordem “SEM ANISTIA” segue atual e urgente. Há ativistas preocupados com o fato da prisão do Bolsonaro poder ser utilizada para potencializar sua vitimização e sua transformação em “mártir”. Não podemos pensar sob essa ótica, sua punição exemplar e a perda dos direitos políticos tem que ser mantidas para que a justiça prevaleça. Abrir mão da punição aos golpistas servirá de estímulo a futuras tentativas de golpe. É preciso desbaratar as redes de fake News, os círculos golpistas, prender os ministros e os generais que levaram milhares de brasileiros e brasileiras à morte com o negacionismo durante a pandemia e encarcerar toda a rede de financiamento e organização da tentativa de golpe. Crimes contra a humanidade não prescrevem.

Nossa tarefa é intensificar a organização dos movimentos sociais, ocupar as ruas, organizar as lutas no campo e na cidade, fortalecer a luta das mulheres, de negros e negras, dos povos indígenas, da juventude, de LGBTs e cobrar do governo Lula a aplicação de recursos e políticas públicas para nosso povo. Ao mesmo tempo exigir que o governo deixe de ceder espaço ao centrão (bolsonarista em sua essência) em busca de uma suposta “governabilidade”. Já vimos esse filme no governo Dilma. A maior governabilidade é o povo organizado e consciente de suas necessidades.

 

 Fernando Carneiro

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